A folga é sagrada. Literalmente. Basta olhar as religiões. No Islamismo, o dia de descanso é a sexta-feira, quando os muçulmanos fazem a Salat al-Jumu'ah, uma oração sagrada. Para os judeus, a folga espiritual vai de sexta-feira até o pôr do sol de sábado. É mandamento fundamental da Torá que os judeus dediquem o período à contemplação e à espiritualidade. Para os Cristãos, domingo é o dia do descanso inegociável. Aqui pra nós, duas mães solos, a folga sagrada é qualquer dia em que a criança está com o pai ou a avó. Santo dia!
Viver sem descanso prejudica nossa qualidade de vida e nossa saúde. Nossa capacidade de atenção cai, nossa memória falha, e nossa capacidade de aprender trava. Também perdemos um pouco da leitura social: vemos ameaças ou julgamentos em expressões faciais neutras e ficamos mais irritados com obstáculos simples. Ou seja: dá vontade de chutar a cadeira dos colegas de trabalho. Então, antes da demissão por justa causa, bora tirar uma soneca?
Por outro lado, uma boa noite de sono pode nos tornar mais criativos, empáticos, bons parceiros e melhores pais. E quem diz não somos nós, é o psicólogo Aric Prather, da Universidade da Califórnia, em São Francisco, autor do livro “The Sleep Prescription”.
Mas, claro, só dormir não resolve. Folga também é não fazer nada, curtir bastante, ou até ficar cansado, mas fazendo outra coisa além de trabalhar: uma trilha, uma balada, uma viagem. Na coluna Smarter Living, do New York Times, o jornalista Tim Herrera vive dando dicas de como curtir um dia livre. Compilamos algumas aqui, agregando nossa visão sobre cada uma:
Perdoe alguém: "O que realmente ganhamos guardando rancores, além de anedotas divertidas para contar em festas? E o que poderíamos ganhar abrindo mão deles? Como se vê, bastante: um estudo de 2006 sugeriu que “treinar o perdão pode ser eficaz na redução da raiva, reduzindo o estresse e os sintomas físicos". Então, sabe, talvez valha a pena". Adendo da Folga: perdoar, sempre; esquecer jamais. Não use essa dica para voltar com boy lixo.
Faça aquela coisa que você está adiando: "Sim, sim, uma hora eu vou fazer isso - é a pequena mentira que todos dizemos a nós mesmos para evitar fazer as coisas em nossa lista de tarefas que estão pairando sobre nossas cabeças. Mas hoje é um ótimo dia para fazer isso! Envie aquele e-mail, termine aquela tarefa em casa, envie aquela nota de agradecimento de feriado que você ainda não conseguiu. Seja o que for, apenas faça. Você vai se sentir muito melhor, eu prometo". Adendo da Folga: Não use essa dica para retomar D.R com boy lixo.
Não faça absolutamente nada. "Não há muito mais a dizer aqui! Dê a si mesmo permissão para ficar plantada na frente da TV hoje, recarregar as baterias e ter uma boa noite de sono. Pode até torná-la mais produtiva no trabalho esta semana". Adendo da Folga: esse conselho harmoniza muito bem com uma taça de vinho. Só não use o vinho como desculpa para mandar mensagem pro boy lixo.
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Carol e Hel.
Ao comer a maçã, Eva acabou pra sempre com a folga.
Por Carol Pires
A gente sabe o começo da história: Deus fez o Céu e a Terra, criou uma porção de plantas e animais, construiu Adão e Eva e no sétimo dia descansou. Aí Eva inventou de provar do fruto proibido. E, ao morder a maçã, Eva inventou também a maternidade. Certamente ela, como mãe da humanidade, nunca mais ouviu falar em folga.
Aqui em casa eu tenho uma Eva própria - que, aliás, não come maçã, mas come massinha. E por essas e outras eu também nunca mais tive folga desde que ela chegou por aqui. Em julho, porém, ela vai passar duas semanas com o pai. E eu estou empenhada em usar esses dias para um merecido descanso.
Folga vem do latim follicare - que não significa fornicar, isso sim uma bela folga. Follicare é soltar, afrouxar, tomar um ar. É isso que eu vou conseguir em julho, uma folga no sentido de pausa, intervalo, suspensão. Uma ideia é usar esse tempo pra não fazer nada, aproveitar o ócio, o marasmo, a calmaria. Só que essa folga não vai rolar porque só vou ter pausa na maternidade, não no trabalho.
A alternativa seguinte é usar a folga no sentido de divertimento. Passar uns dias bem folgada na casa da Mari, minha amiga e pousada no Rio, alternando trabalho com samba, café com ressaca, sono e praia. Mas aí, penso, eu descanso a cabeça mas machucou o bolso: vale mesmo viajar pra farrear e voltar mais pobre e cansada?
Acho que a folga que eu estou buscando é aquela que remete à sobra: abastança, abundância, fartura. No dicionário de ideias afins, a palavra folga vem ao lado das expressões "levar boa-vida", "nadar em mar de rosas", "não ter falta na vida", e "ser feliz". E é mesmo tentador pensar que vou conseguir descansar de verdade quando tiver tudo de sobra: dinheiro, ajuda, tempo. Quero viver com folga.
Só que, quando eu penso assim, eu me canso ainda mais. Porque significa que não posso tirar um dia de folga/pausa. Pra chegar à tal prosperidade, preciso trabalhar mais e mais e mais e mais pra um dia ter folga/sobra. E aí? Tiro folga ou vivo com folga?
“Toda pessoa precisa tirar um dia de folga", diz a Maya Angelou. E eu não precisava ler a Maya Angelou pra saber disso. Mas ela diz isso de uma forma melhor do que eu seria capaz. Folga, ela diz, é um dia "em que se separa conscientemente o passado do futuro". Se Angelou está certa, a verdadeira folga está em esquecer os ressentimentos do passado e as ansiedades do futuro. Seria o segredo de uma bela folga conseguir estar 100% no presente?
Realmente nos poucos momentos que eu consigo estar no tempo presente é quando estou com a Eva - a que come massinha, não maçã. E mesmo assim dura pouco. Logo vem um pensamento sobre um roteiro, um boleto, o pneu careca do carro que eu preciso trocar, o exame da endocrinologista que sempre esqueço de fazer, a reunião com a supervisora da terapia dela… Aí e eu já me cansei de novo com todo o futuro pela frente. E sou tomada pelo ressentimento pelo passado em que não tive toda a ajuda que precisava.
Encontrar esse lugar, de não sofrer com passado nem com o futuro, eu só vou encontrar na terapia, e por enquanto tô sem tempo, irmão. Fecho, então, com a Maya Angelou, que é a terapia possível agora: mundo vai seguir girando sem nós, ela diz, então é possível - e necessário - tirar um dia pra não procurar as soluções dos problemas. "Cada um de nós precisa se afastar dos cuidados que não se afastam de nós".
Folga na deprê
Por Helen Ramos
Folga na deprê
Por Helen Ramos
No último ano, recebi uma visita chata e insistente. Tão inconveniente que é chamada mal do século. Ela mesma, essa maldita: a depressão. Não foi a primeira vez que eu ela nos encontramos. Em 2014, a conheci um mês depois de meu filho nascer. Já tinha ouvido falar, já tinha presenciado anos de vida da minha mãe deprimida, mas eu jamais imaginei o quão forte podia ser aquele oco e frieza dentro da gente. Primeiro, pedi perdão mentalmente para cada pessoa que eu não tive empatia nesse processo. Depois, entendi que não podia subestimá-la.
Mas, antes, precisei entender o que era aquilo. Eu tinha todo o amor do mundo pelo meu filho. Também não estava me sentindo triste. O que me faltava era sentir alguma coisa - porque eu vivia uma total apatia diante da vida e de todos ao meu redor. As memórias dessa época são bem tristes. Pra me sentir viva, eu virava noites, exagerava em substâncias, ou me deixava passar por situações terríveis, já que eu não sentia nada sequer diante da dor.
Eu lembro muito da sensação de um dia ir ao verdurão e na volta ter o simplório desejo de me deitar no asfalto frio da rua, e por ali ficar abraçada com as bananas, esperando a vida acontecer até aquela sensação passar. E PASSOU. Não foram as bananas, mas psiquiatra com terapia, muito exercício físico e paciência. Foi trevas. Eu nem sabia se eu voltaria a me sentir bem de novo, mas voltei. Um ano e pouco depois, eu consegui fazer o desmame do remédio, voltei pra São Paulo e de lá pra cá é história, muita coisa aconteceu. E quando eu menos esperava, Depressão Parte 2, O Inimigo Agora É Outro voltou a passar na sessão da tarde, da noite, da manhã na minha vida. Ô lasqueira, viu.
Eu tinha esquecido completamente como era a sensação de ter isso me acompanhando a cada minuto do dia. Eu tinha esquecido o quanto estar deprimida é realmente a pior coisa que já experimentei. Não em intensidade pois, axé!, que minha depressão não me esmagou a ponto de eu não conseguir me levantar da cama. Mas é a pior coisa que já experimentei por questão de continuidade - algo que está sempre ali à espreita sem descanso por muuuuuuito tempo. Não é uma cólica que a gente sabe que vai passar, não é um dia frio que um agasalho felpudinho conforta. É uma música dramática tocando lá no fundo da sua alma, enquanto tudo o que você queria era achar o botão de parar, ficar em silêncio. (Mas, spoiler: você não acha. Ela para uma hora, mas no timing dela.)
Se tem uma coisa que eu queria ter folga era dessa sensação. Um dia solar, otimista, de boa. Mas meu superego estava a todo vapor, me falando diariamente que eu não era boa em nada que fazia, que o melhor seria desistir de tudo e me isolar de tudo de todos. Porque não fiz Direito? Por que não fiz Medicina? Meu pai e minha mãe tinham razão! (Nessa hora deveria tocar uma sirene em nossa cabeça alertando: é cilada, Bino, não caí nessa de cumprir o desejo dos pais). Mas depressão é Olimpíada de autodepreciação, de desacreditar em você. Para piorar, o carisma para socializar despenca enquanto as comparações com o outro sobem a níveis cruéis. E a culpa? Nossa senhora! Digna de uma criação cristã-espírita. Culpa de gastar, culpa das escolhas, culpa de não ter falado tal coisa para aquela pessoa, culpa de não conseguir produzir (Marx se revirando no caixão, coitado).
Libido? Quem? Se já tive, não me lembro. Geral me pedindo um podcast e eu só pensava: eu não tenho nada de tão importante pra compartilhar, eu não sou ninguém, gente, pra que? Mas, graças à análise (com um analista maravilhoso), eu tinha flashes de consciência, pequenos lampejos que me traziam uma lucidez, uma vozinha laaá lá laaá dentro, bem baixinha, no fundo do mar: "você não é assim, você está assim. Respira, pede ajuda e tenha paciência"
Muita psicanálise, psiquiatra, neurologista, ginecologista, livros, yoga, academia, mapa astral, amigas pacientes, aromaterapia, cantos, palhaçaria, muitos drinks, nenhum drink, eu tentei de tudo. Os exames de sangue em dia, saudável pra caramba. Troquei medicação, e ia esperando, sofrendo e seguindo. Achei inclusive que eu só tinha envelhecido da noite pro dia e que talvez eu tivesse me tornado essa pessoa, chatona e descrente do sentido da vida. Falava isso enquanto marcava reuniões para voltar para uma agência de publicidade, que - nada contra, tenho até amigos que são - mas para mim nesse momento seria o fim. E aí fui nadando, paciência, dias ruins, dias melhorzinhos, remédio novo bateu, fez bem, psiquiatra querido e atencioso. E assim a vida foi acontecendo. Muita análise, muito podcast de psicanálise, muita literatura boa, um namorado parça, um filho muito abençoado com uma idade que tô amando, os 9 anos. As dívidas foram sendo pagas (nem todas), o capitalismo continua sambando em nossa cara, mas percebi que não queria me anular por ele, mas não tava sabendo como me salvar. (Acho importante falar do capitalismo pois acredito que ele seja um dos grandes fatores do adoecimento psíquico contemporâneo.)
E no meio disso tudo ouvi dizer por aí (só ouvir dizer mesmo, em uma mesa de restaurante), que o método contraceptivo que eu estava usando, o DIU hormonal, no caso, poderia estar contribuindo com tudo isso. Não preciso nem dizer que cheguei em casa e comecei a dar googles e mais googles sobre o assunto. E, claro que em matéria de corpo cis feminino e pesquisa nós o que? Nós nos fudemos como sempre. Achei poucas coisas a respeito. Afinal, mete hormônio nessas mulheres enquanto nós homens nem camisinha queremos colocar. Isso, isso querida mulher, tome contraceptivos para previnir a gravidez, porque quem tem que cuidar disso mais uma vez são vocês: mulheres, custe o que custar, inclusive custando sua saúde. Mas achei sim algumas coisas (infos aqui, aqui também e mais aqui). Marquei a ginecologista, passei a consulta escutando dela por duas horas que sou muito fértil, que preciso tomar cuidado para não engravidar. E, sim, está certíssima, mas não há tesão por aqui que me faça querer mais um filho. Mas, enfim , tchau, DIU!
Tratar uma depressão é algo muito peculiar e individual, e apesar de ser cada depressão ter suas particularidades eu posso afirmar que o combo terapia, psiquiatra, exercícios físicos e sol são essenciais. Cada um tem seu tempo, seu processo, mas caso você esteja deprimida (o) (e), não deixe de procurar apoio profissional. Tenho plena consciência o quão polêmico pode ser esse relato, e também tenho consciência que não posso levantar uma bandeira contra métodos contraceptivos hormonais sendo que nem aborto legalizado temos no brasil. Mas olha, no meu caso, com o meu corpo, tirar o DIU, foi um grande alívio. Tive uma melhora absurda. Mesmo não podendo te afirmar que isso era o grande vetor da minha depressão, acho importante como mulher cis compartilhar isso com vocês.
Eu voltei pra mim. A sensação que eu tenho é que minha alma colou no meu corpo novamente. Eu melhorei tanto que tive que reduzir até minha dose de remédio, que ficou além da conta no meu corpo. Eu e a libido nos reencontramos tal qual a cena da novela A Viagem em que Diná reencontra Otávio, já mortos, no Nosso Lar.
Enfim eu tirei uma folga na melancolia, de um julgamento e cobrança monstruosos comigo mesma. Foi a melhor folga que pode ter me acontecido, sinceramente. Como é bom ser eu de novo. E não tenho garantia do amanhã, né? Ela pode voltar, eu sei. Mas enquanto isso não acontece eu ando aproveitando as pequenas coisas. Um sol na pele, um pão na chapa gostoso. Uma cama de lençol trocado, um bar com amigos. Essas coisas pequenas mas que são gigantes quando você consegue celebrá-las novamente.
O podcast vai sair, vai se chamar Radiohel, essa newsletter continua, e parabéns pra Carol Pires e para mim e pra Anielle Franco que conseguimos fazer jornalismo independente e sem grana, mas por favor a gente precisa de grana, precisamos de Folga, então nos apoie, ok?
CARTAS DA PAULA
Nesta edição, em vez de pedir cartas das leitoras, pedimos cartas das colunistas convidadas que já passaram por aqui:
Camila Fremder, host do podcast É Nóia Minha: Parece que foi ontem. Olha como já ta grandinha! Sim, sou tia babona mesmo e me derreto em elogios pra falar dessa newsletter que eu conheci quando era uma sementinha ❤ ️ Sucesso, meninas, vocês arrasam!
Renata Corrêa, roteirista: A maternidade na internet é um conceito em disputa. Entre tantos posts que estimulam o sacrifício da mulher e a ideia de que não existe identidade para além da mãe, ler a Folga é um alívio. Um pedacinho da internet onde as mães podem ser pessoas: contraditórias, imperfeitas e inteiras.
Nath Cruz, roteirista: Gosto de como a FOLGA cumpre com sua proposta de ser um espaço - quase físico - de descanso. Um hiato na correria dos dias. Em tempos de overdose de conteúdo, ter uma newsletter feita com carinho, pesquisa, cuidado e responsabilidade é um bálsamo para as almas desse país. Por muitos mais anos de FOLGA!
Camila Bomfim, apresentadora da Globo News: Na Folga, a gente bebe na fonte do papo reto. Sem romantizações nem caixinhas. Uma terapia para ler , pensar e se libertar!
Giulia Martini, terapeuta sexual: Eu gosto do julgamento que aflora quando leio outra mãe fazendo algo que acho inimaginável. Que me mostra outras maternidades possíveis. Ativamente transformo minha idealização em ruínas, e vou chegando mais perto de mim.
Giovanna Nader, comunicadora sociombiental: Confesso que não tenho a mínima paciência para livros de maternidade e nem grupos de mãe. Gosto mesmo é daquela boa e velha troca de conselhos com aquela amiga que você se identifica só de olhar, sabe? E o Folga pra mim é a personificação disso em forma de newsletter. Fico ali guardando aquele momentinho da leitura para quando preciso de um aconchego e um colo de amiga. Três mulheres com realidades distintas de maternidade, que me ensinam tanto e me fazem olhar pra minha com mais carinho. Obrigada Carol, Helen e Anielle pelos momentos compartilhados. E continuem, continuem, continuem, pela sanidade da nossa maternidade.
Talvez você não tenha tempo, mas fica aí a dica:
Dica da Carol: A segunda temporada de And Just Like That, o spin off de Sex and the City estreou nesta quinta, dia 22, e é a desculpa perfeita pra se dar muitas horas de folga. Eu amo e odeio um pouco de cada personagem, concordo que falta diversidade à série original, como a todas as séries mais famosas dos anos 1990, mas me rendo à dinâmica de amizade entre mulheres, a busca por sexo e amor, o deslumbramento com Nova York e o descontrole financeiro diante de um belo par de sapatos. Guilty pleasure assumido.
Dica da Hel: A gente mira no amor e acerta na solidão. Livro da psicanalista Ana Suy. Mas não se preocupe se você não manja nada de psicanalise, o livro é um bate papo sobre o amor e a solidão, muito interessante e gostoso. Boa Leitura!