Que peso tem a amizade em nossas vidas? Para responder essa questão, pesquisadores da Universidade da Virgínia fizeram um experimento: pediram a 34 estudantes para subir uma ladeira segurando uma mochila com cerca de 20% do seu peso corporal. Alguns foram sozinhos. Outros, em dupla com um amigue. No fim da caminhada, tinham que acertar qual era a inclinação da ladeira (de 26 graus). Resultado: pra quem foi sozinho, a ladeira parecia mais íngrime. Pros acompanhados, parecia menos. Além disso, quanto mais tempo a dupla de amigues subindo a ladeira juntos se conheciam, menos íngrime a subida era sentida. O resultado da pesquisa é poética: a amizade alivia o peso do mundo.
Mas e a amizade na maternidade? Ter filhos parece ser um filtro de amigues. Uma vez que seu filho(a) nasce, muitas pessoas se afastam. Pode ser um porre ouvir sobre cólicas, choros, alergias, e até mesmo primeiros sorrisos (que você, sem filhos, achou mais parecido com um espasmo involuntário). Do outro lado, nada parece menos importante do que ouvir sua amiga falar de mais um crush (que tá na cara que é chernoboy) enquanto você queria aproveitar o tempo livre pra reclamar da falta de tempo.
Um estudo holandês concluiu que "a intensidade das amizades costuma cair depois que temos filhos. Diz lá que homens e mulheres quando se tornam pais e mães perdem contato com amigues e aumentam contato com vizinhos e parentes. Mas apesar de algumas amizades acabarem, as que ficam tornam-se bastante intensas, porque a maternidade pode ser bem dura e crua (e nua também, mas só porque os peitos inflamam, não porque sobra muito tempo pra sexo).
Na Inglaterra, 90% das mulheres disseram a uma pesquisa sentirem-se sozinhas depois da maternidade. E isso é uma bomba pra nossa saúde. Amigos também são uma conexão importante com o mundo (quando estamos naquele puerpério mucho loco) e oferecem um grande alívio praquele ódio que a gente sente de estar desempenhando um papel que é super romantizado e carente de amparo — quando estamos falando da mãe; quando se trata do pai a história é outra.
Muitas vezes, as amizades arrefecem na maternidade porque aquele seu interlocutor não está bem pra te ajudar. A melhor amiga, nessas horas, pode estar passando por um perrengue e não vai dar conta de dividir o seu. Ou até sua mãe, que era o amor da sua vida, pifa na hora de ser vó. Por outro lado, pode ser uma amiga mais jovem e solteira que vai aparecer para segurar o seu tranco. E quem aí não fez uma nova amiga virtual na pandemia?
Manter amizades na maternidade é tão importante que a jornalista Lyz Lenz, mãe de dois, escreveu um roteiro de como fazer amizades com outros pais. Spoiler: é tipo se lançar numa espécie de Tinder, tem que estar disposto pra fazer rolê e pra decepção. Comece perto de casa, a Lenz aconselha. Há algum trabalho voluntário na escola do seu filho? Ou quem sabe uma aula de baby yoga? Buscar grupos online sobre temas com os quais você já concorda facilita muito. (Sim, e estimula viver em bolhas, mas quem gostaria de conviver com bolsonaristas? Aff.) Se estiver com vergonha, deixa que as crianças se entendam primeiro e depois busque aproximação. E lembre-se que "nem todo relacionamento é feito para durar". Falou que vacina transforma em jacaré? Cai fora. E repita todos os passos outra vez.
Vale a pena? Vários estudos mostram que ter amizades nos faz mais felizes e mais saudáveis. Amigues nos dão a sensação de pertencimento e aumentam nossa autoestima. Manter relacionamentos saudáveis e divertidos diminui o estresse, protege a saúde cognitiva, física e mental. Ter amigos está relacionado até com uma maior expectativa de vida.
E aí, quer tc? Mande pra gente seu relato sobre amizade na maternidade.
AMIGA URSA
Por Helen Ramos
Eu tenho uma amiga que de tanto pegar roupas emprestadas, me afeiçoei à combinação de perfume chique com notas de Marlboro Light. Sabia o cheiro do suor dela com desodorante e podia adivinhar se naquele dia ela tinha cozinhado o macarrão da nona dela.
Ela é uma amiga de alma brava, humor rápido, inteligência ácida e sol em escorpião, que conheci na adolescência e não por acaso hoje é a madrinha do meu filho.
Desde, então, tivemos muitas fases. De se arrumar uma na casa da outra.
De sonhar muito em trabalhar juntas.
De precisar ficar longe.
De sentir muita mágoa.
De esquecer da mágoa e precisar muito ficar perto.
Mas nunca tivemos a fase brigadas por homi. Se o boy tivesse aqueles olhinhos apertados e fosse meio Ryan Gosling, eu já sabia que ela iria pedir desse drink. Não tinha erro. Olhava de longe e lá estava ela com seus mini-shorts, super-botas e sua linguagem corporal que mistura moleque maroto com musa egípcia sedutora e fatal.
Lembro de um carnaval do mal (nome de uma maravilhosa festa de carnaval rockeiro de Brasília dos anos 2000's) em que passamos a noite bebendo muito, rindo, dançando na pista, carregando amiga que deitava na grama de tão chapada, brigando com o amigo que pegou de novo aquele crush tóxico, enfim, vendo o pau comer.
Já amanhecendo, hora de ir pra casa (alô juventude, saudades), fui fazer o pole dance num poste e caí no chão. A meia calça rasgou, meu joelho abriu, o sangue escorreu, rimos, ou talvez só eu ri, e ela falou “chega, já pro carro!”. O carro era um golzinho vermelho com toda uma vida ali dentro: porta-malas com vodka e água, mochila com roupa pro trabalho caso ela virasse a noite ou dormisse em alguém, e também biquini pra aparecer de gaiata num churrasco. Liguei o som e coloquei "Black Star”, música do álbum The Bends, do Radiohead, para tocar. Ela não gostava e não gosta de Radiohead, mas eu amava e amo. De joelho aberto também queria abrir o coração e cantei pro alto:
I keep falling over, I keep passing out // Eu continuo caindo eu continuo desmaiando
When I see a face like you // Quando vejo um rosto como o seu
E eu, que raramente choro, comecei a chorar de soluçar. Tinha me segurado a noite toda pra não falar daquele meu ex. Aquele ex. O que nunca me assumiu e beijou outras na minha frente o Carnaval inteiro (quem nunca, né?). E eu sabia que nenhum amigo, nenhuma alma viva aguentava mais aquele meu choro, mas ela sim.
Já tinha passado muito tempo, mas a dor, não. A dor de cotovelo era maior que a do joelho rasgado.
Mas nessas horas ela virava uma mãezona-ursa-polar. Aconselhava quem tava se afogando em lágrimas, e fazendo brincadeira ela fazia a gente rir enquanto chorava. O ritual dela de curandeira-de-coração-partido era fritar uma batata frita nas lágrimas, tirar uma foto da sua cara bem inchada (pra um dia te mandar dizendo "viu como as coisas passam?"), te dar um banho, te vestir com pijama de bichinho fofo e te dizer "deixo você dormir com o senhor Tinoco, que ele é muito bonzinho". Senhor Tinoco, no caso, era o nome do pijama dela.
Foi assim nesse dia do joelho aberto.
Foi assim no dia do teste de gravidez positivíssimo.
Foi assim nas 89 vezes que apareci na casa dela inventando uma desculpa qualquer, mas que ela já perguntava: “você não tá bem, né, Helen? Vai dormir aqui?”
E também teve dias em que não foi assim esse amor todo.
Teve dias em que engolimos mágoas, fechamos a cara, interpretamos errado, ou passamos do limite em nossos achismos e interpretações uma da outra. Já faltou muita coragem pra uma conversa sincera e difícil.
Na última vez de desentendimento difícil, tivemos um ataque de riso porque combinamos a D.R., mas na hora não lembramos o que aconteceu pra gente ter se afastado. Então, aproveitamos para nos atualizar das fofocas e encher a cara. Só no dia seguinte, de ressaca, eu me lembrei o motivo. Mandei um áudio, ó, lembrei, mas não é pra gente brigar, é só pra não varrer a sujeira pra debaixo do tapete de novo.
Aí as outras amigas não entendem nada quando a gente reaparece abraçada (depois de reclamar intensamente uma da outra pelas costas). De antemão, amigas em volta dessa dupla, peço desculpas: talvez aconteça de novo. Amizade antiga também precisa de análise e, se tem amor, tem vontade de fazer diferente. Amizade é um relacionamento difícil pra porra.
Se ela é minha melhor amiga? Acho que nem tenho mais isso de melhor amiga.
É a madrinha do meu filho. Uma madrinha mega presente? Sim, não. Depende.
Do dia um da gravidez até o dia do parto, em que ela pegou um avião e chegou em menos de 12 horas, era ela quem estava lá. Depois veio o puerpério e era ela segurando minha mão nas madrugadas de choro e nos dias de solidão. Depois, como um monte de casal que têm filho e não transa, nos afastamos. Mas quando ela fica longe, deixo de ver quem eu sou através daqueles olhos de jabuticaba enquadrados por cílios gigantes e as sobrancelhas mais expressivas que existem. Eu até reconheço o suor dela, mas não faço ideia do que existe nas profundezas daquele mar negro. Só sei que é profundo e forte.
Alô, Suellen?
Por Anielle Franco
“Você sabe que talvez você tenha que criar sua filha sozinha, né?"
Foi a resposta da minha grande amiga Suellen ao meu comentário de que queria ser mãe (naquele fatídico primeiro casamento).
Suellen é enfermeira obstétrica, humanizada, super antenada em tudo que rola na área da saúde. E é pra ela que eu ligo quando eu ou minhas filhas sentimos qualquer dor. É uma amiga-Samu.
Quando admiti minha vontade de ser mãe, ela tinha acabado de parir meu afilhado, o Arthur. Ela sabia da minha vida e do que estava falando.
Pois bem: engravidei.
No meu sexto mês de gestação, levei vários golpes de traição do então marido e uma rasteira do meu obstetra, que avisou que, apesar de me atender pelo plano de saúde, me cobraria uma fortuna extra para ficar comigo durante todas as horas que levariam um parto normal (fortuna que eu teria que pagar antecipadamente).
Alô, Suellen?
Ela me indicou a doutora Andrea Portugal, que esteve comigo nos partos da Mariah e da Eloah. Sofro só de pensar que um dia ela vai se aposentar.
(Aliás, aqui quero abrir um parênteses e reforçar que você, musa que nos lê, precisa arrumar um tempinho para se cuidar e fazer uns exames de rotina. Isso é muito importante!)
Bom, de volta ao parto e à amiga. Foi minha irmã, Marielle, e minha amiga-irmã Suellen, que seguraram minhas mãos enquanto eu escandalizava a maternidade com meus gritos ao parir a Mariah. Só me acalmava porque a Suellen olhava pra mim e dizia: "dói mas passa!”
Em casa, com a bebê recém-nascida, eu tinha muitas, muitas dúvidas sobre tudo que vocês imaginam e não imaginam. Alô, Suellen? Temperatura da água do banho? Amamentação? Qual repelente? A menina não para de chorar de cólica às duas da manhã! Acho que meu leite não é suficiente pra fome dela! Suellen, você estava certa: estou criando minha filha sozinha.
A amizade da Suellen foi como um bálsamo no meio de uma tempestade bem duradoura. E foi também a minha salva-vidas quando chegou a calmaria. Depois que a Mariah cresceu um pouco, eu me separei. E depois que me separei, baixei o Tinder. Alô, Suellen?
É claro que eu preferia pedir que ela olhasse minha filha pra eu poder sair da seca do que ligar pra qualquer pessoa que pudesse me julgar. Eu sabia que meus pais ou minha irmã ficariam prontamente, mas naquela época eu ainda sentia uma certa vergonha (depois superada) deles, como se estivesse incomodando minha família por ter feito uma escolha errada de ter casado com quem casei.
A Suellen me fez ter certeza de que fortalecer os laços de amizade é importantíssimo quando nos tornamos mães. Mas tô falando aqui de amizade que impulsiona, que nos leva pra frente. Porque também já tive muita amizade ruim que mandei catar coquinho e nunca mais apareci. Já com a Suellen, vai dar um trabalhão se um dia eu quiser mandá-la tomar coquinho porque a gente tem uma tattoo juntas escrita “soul sisters”, e não saberia como apagar a nãoo ser chamando “Alô, Suellen?”.
TIRE UMA FOLGA NO CLUBE DA DOIS PONTOS
Um livro também pode ser o melhor amigo de uma mãe — ou uma verdadeira FOLGA! E temos uma dica valiosa pra você, mãe cansada, que quer descansar a cabeça e nutrir a alma: os clubes de assinaturas da Livraria Dois Pontos.
São dois clubes. O Bússola é de livros de não-ficção e aborda temas que estão no centro das nossas vidas: relacionamentos, amor, trabalho e tecnologia. E os livros escolhidos são de autores com um olhar curioso e instigante, que enchem a gente de assunto pra conversar depois.
E no clube Histórias Irresistíveis tem as novidades mais empolgantes da literatura nacional e estrangeira: histórias deliciosas, emocionantes, afiadas, sensíveis, inteligentes e divertidas, dessas que você não consegue largar até terminar (ou até o bebê acordar!)
Ah, e os livros são escolhidos por uma equipe maravilhosa da Dois Pontos (gente de verdade, sem algoritmos), que envia os livros (sempre inéditos) pro aconchego da sua casa (com conteúdo extra que vira um pôster lindo!).
Pras FOLGADAS, o os clubes saem por apenas R$39,90 no primeiro mês, sem compromisso de seguir (mas aqui a gente sabe, por experiência própria, que essa folga a gente quer pra sempre!)
É só usar o cupom QUEROLER para garantir o desconto no site!
Você não está sozinha
Por Carol Pires
Por curiosidade, pesquisei “autismo” no meu histórico de conversas pra ver em que momento essa palavra apareceu pela primeira vez na minha intimidade. Foi em abril de 2019. Eu estava grávida da Eva, que nasceria dali um mês. Na mensagem, eu contava para o pai dela sobre um amigo que estava preocupado com o filho de um ano, que ainda não apontava nem atendia pelo próprio nome. Consideramos que podia ser autismo, “algum grau leve de autismo”, como eu disse, sem entender bulhufas sobre o assunto. E concluí: “espero que a Eva seja um prodígio e já fale aos nove meses, como minha sobrinha”.
Minha filha não falou com nove meses. Hoje ela tem três anos e ainda fala muito pouco. Com um ano, ela apontava, dava tchau, batia palma, respondia ao próprio nome, balbuciava “mamã” e repetia umas interjeições nordestinas do avô. Achávamos lindo ela dizer “eita” pra tudo. A cada dia, eu sentia seus pequenos avanços. Mas o “mamã”, em vez de virar mamãe, começou a ficar mais raro, até sumir. Depois, ela parou de apontar. E, uma hora, deixou de olhar quando eu a chamava.
Um dia, na mesa do café da manhã, irritada que o pai dela e a minha mãe não me levavam a sério quando eu dizia que algo estava estranho, apoiei minhas mãos na cadeirinha dela e repeti seu nome bem alto várias vezes — Eva!, Eva!, Eva! —, como quem tenta encontrar outrem no escuro. Diante do rosto da minha filha olhando o vazio em silêncio comecei a chorar.
Quando me perguntam como eu percebi tão cedo que a Eva estava no espectro (os médicos me diziam que a maioria dos pais só buscavam ajuda lá pelos três anos, quando cedo), eu contava que tinha lido um bocado sobre o assunto para me manter como boa interlocutora daquele amigo que, lá atrás, estava preocupado com o filho. E porque quis entender o assunto, vi claramente quando ele se manifestou na minha casa. Tentando entender o outro a gente se entende melhor.
No momento em que comecei a dizer para amigos que estava preocupada porque minha filha ainda não falava, quando o diagnóstico era só uma suspeita, invariavelmente me diziam que "cada criança tem seu tempo". Há sempre alguém que conhece alguém que tem um filho que só foi falar aos 5 anos e "hoje está super bem".
Também é muito comum que tentem te dissuadir — “claro que ela não é autista” — como se soubessem qualquer coisa sobre o assunto ou conhecessem sua filha melhor do que você. Aí eu, que no fundo não queria acreditar, me via tentando convencer aquele alguém de que sim, ela estava no espectro, e estava tudo bem. Tentando convencer quem não precisava de convencimento, fui esclarecendo o assunto pra mim mesma.
Mas essa falta de interlocução, de sentir que ninguém além daquele amigo que também é um pai atípico me entendia de verdade, me fez sentir uma imensa solidão.
Depois do diagnóstico médico e do entendimento de que a humanidade é neurodiversa e que quem deveria mudar eram as estruturas do mundo, e não minha filha, passei a contar para mais pessoas. (Mas isso levou quase um ano, porque o processo não é linear nem rápido.) Alguns amigos ficaram constrangidos com a notícia, sem saber o que responder. Outros mostraram interesse e saíram fazendo perguntas — o que às vezes é legal, porque mostra empatia, mas nos dias de mau humor é um saco ter que ser o momento educativo de alguém.
Teve também aqueles que ficaram consternados na hora e deles nunca mais ouvi falar. (E tudo bem. A vida de ninguém tá fácil. O cenário do meu drama pessoal era uma pandemia global. E tenho certeza de que também fui uma amiga ausente para muita gente que eu amo de verdade porque não tinha o que oferecer naquele momento)
E teve também a reação do meu núcleo duro de amizades, que sempre esteve e segue aqui pro que der e vier.
O amigo que me levou a ler sobre autismo virou, mais do que nunca, meu ombro pra todas as horas. Então, entendi que os amigos que não estavam vivendo o mesmo que eu talvez nunca dariam conta de me fazer sentir compreendida. E tudo bem também. Não quero falar de maternidade e espectro autista o dia todo com todo mundo. Pra suprir essa carência, eu encontrei outras amizades, novas e virtuais (afinal, era pandemia).
Foi em um grupo de WhatsApp com cinco mães atípicas que chorei quando descobri meus capacitismos (porque somos culturalmente preconceituosos e precisamos trabalhar para nos despir deles). Foi pra elas que admiti estar aliviada por ter um diagnóstico e com quem voltei a me revoltar contra o diagnóstico com o qual eu tinha feito as pazes semanas antes. Elas entendiam como ninguém a angústia, o medo, a ansiedade, a revolta, e os alívios cômicos dentro daquilo. Todas ali já tinham passado pelo caminho que eu estava tateando e foram me dando as coordenadas, gritando no escuro para eu me encontrar.
Elas seguraram minha barra quando me deparei com neurologistas desalmados e se juntaram a mim pra xingar aquele desgraçado que fez um comentário infeliz sobre a Eva no parque — que na verdade era só uma criança de quatro anos inocente, mas que quando ri das deficiências da sua filha te enfurece tanto quanto se tivesse sido um bolsonarista falando bolsonarices.
Elas também estavam lá nas horas de celebrar pequenas conquistas. Desconfio que só elas tinham saco para ver tantos vídeos da criança na fonoaudióloga e podiam entender o alívio feliz de ouvir aquele "mamãe" que eu tinha esperado por anos (como elas também já tinham esperado antes de mim).
Mas, como disse pra elas outro dia, sinto que encontrá-las foi poder enxergar que ter um filho atípico seria um desafio exponencialmente mais difícil, mas que aquele raio não tinha caído só na minha vida como se fosse um castigo ou um karma (pensamento capacitista dos infernos!), e sim só a vida sendo a vida, caótica, imprevisível e ainda assim bonita.
Às mães que se descobriram atípicas agora, venho do futuro contar: vocês não estão sozinhas.
Colunistas convidadas
Corre duplo
Por Alinexú e Alessandra Ayabá*
Nunca esqueceremos do dia em que nos olhamos e falamos: "vamos ser mães?".
Nossa hora surgiu depois de alguns meses fortalecendo o corre de uma amiga mãe solo. Ela deixava a cria em uma escolinha particular de segunda a sexta-feira, mas aos fins de semana não tinha com quem. Tendo plena noção de que a vida de uma mãe solo não é fácil, resolvemos assumir a missão de cuidar daquela pretinha mais linda!
Essa pretinha era a sensação do nosso bonde de mulheres periféricas e lésbicas. Todas ajudávamos com os cuidados dela. Ela chegava lá em casa logo cedo, seis e meia da manhã, ou então já chegava sexta à noite para facilitar. Acordar com aquela pretinha junto com a gente na cama, trocando afeto, fazendo gracinha e depois passar o dia cuidando, dando banho, alimentando e brincando, começou a mexer muito com nós duas.
Foi depois de ficar um bom período cuidando dessa pretinha que o nosso útero começou a coçar. A gente ficava se perguntando: "e aí, quando vamos ter os nossos?".
Um dia, a coceira do útero falou mais alto e a gente resolveu que seríamos mães dos nossos pretinhos e formar nossa família. Nossa primeira ideia era fazer uma auto-inseminação caseira, mas desistimos porque soubemos que existe muita burocracia para registrar as crianças nascidas assim. Mas mãe Oxum, que é tão maravilhosa e presente em nossas vidas, colocou em nossos caminhos a possibilidade de fazer uma fertilização in vitro em uma clínica de reprodução humana com um médico super conceituado. Uma pessoa conhecida estava fazendo útero solidário nessa clínica e eles precisavam de uma mulher preta para fazer ovodoação compartilhada — ou seja, a mulher doadora dos óvulos ganharia a fertilização in vitro. Aquela era literalmente a nossa chance de ouro — Ora Yê Yê Ô, Oxum! (Pra quem não sabe, os procedimentos de reprodução humana são extremamente caros e nada acessível para um casal mulheres pretas e de quebrada como nós. Por isso, é óbvio que nós aceitamos passar pelo procedimento.)
Eu, Aline, passei pelo processo de doação dos óvulos, mas fui eu, Alê, que engravidei. E deu muito certo! Iniciamos os trabalhos em dezembro de 2019 e em fevereiro de 2020 já estávamos grávidas! E detalhe: o nosso asè foi tão grande que engravidamos de gêmeos na primeira tentativa!
Na mitologia africana, os gêmeos são representados pela dinvidade Ibeji. Na cultura africana, as mulheres que ficam grávidas de gêmeos são consideradas mulheres de útero abençoado e próspero. E nós, duas mulheres do Candomblé, sentimos uma felicidade sem tamanho ao saber que eram dois.
Eu, Aline, como sapatão assumida desde os 14 anos, corri para contar pra minha mãe e para os meus irmãos. Para eles, me ver construindo uma família com outra mulher não seria novidade. Os familiares da Alessandra também receberam a notícia com tranquilidade. Quer dizer, nem todos. A Dona Lourdes, matriarca da família, uma mulher de 80 anos, evangélica de uma igreja bem conservadora, moradora do interior de Minas Gerais, ficou com um pé atrás, mas logo entendeu, aceitou e abençoou nossa gestação (convencida pelas tias da Alessandra, nossas parcerias Tia Gil e Tia Lene, que ajudaram muito na falta da mãe da Alessandra, que faleceu há seis anos).
Em 17 de outubro de 2020, em uma manhã linda de primavera, depois de longas 37 semanas, nasceram junto com o sol da manhã Jamal Akesan e Jawari Akesan. Naquele dia, ressignificaram nossas vidas (e o número 17, risos).
Os nossos Ibejis chegaram bem no meio da pandemia — o bagulho estava louco! —, e sentimos muito medo de que algo acontecesse com eles. Isso boicotou muito a nossa rede de apoio, ainda mais que moramos no extremo sul da cidade de São Paulo. Pra chegar até a nossa casa, tem que dar um rolê de transporte público! A exposição era grande pra quem viesse e pra nós que receberíamos. Às vezes, quando estávamos bem cansadas, pedimos ajuda, mas era aquilo: as pessoas tinham que entrar em casa descalças e já correr pro banho antes de chegar perto da gente. Nos primeiros quatro meses de vida dos meninos, a Alê mal conseguia lavar o cabelo e tivemos que procurar uma cabeleireira que viesse em nosso socorro. Hoje em dia, os meninos já estão com quase dois anos, e a rede de apoio presencial melhorou, mas ainda é pouca — nossas amigas também são mães ou trabalham.
Pra compensar, nossa Iyálorixá é muito presente nas nossas vidas. Inclusive, só engravidamos deles depois de receber a benção dos nossos Orixás. Como somos uma família preta, fazemos de tudo para propor um convívio preto e ancestral para Jamal e Jawari. Os dois frequentam a casa de asè desde os três meses de idade e foram iniciados no Candomblé desde os nove.
A gente brinca que o Jawari é o grande macumbeiro da família. O menino tem menos de dois anos de idade e já conhece muito bem o som de um atabaque, grita e festeja toda vez que ouve uma cantiga de mãe Oya, a Orixá matriarca do nosso terreiro.
Algumas pessoas acham lindo ver crianças evangelizando nas igrejas, mas acham um afrontamento para a sociedade ver crianças exercendo sua fé no Candomblé. Por isso levar nossos filhos pra dentro desse asè é um ato de resistência. Mesmo sabendo de todos os perigos que a nossa família pode enfrentar, continuamos resistindo e lutando por um mundo mais seguro e tranquilo pra nós e para as nossas crianças, que são extremamente sortudas por terem nascido em uma família preta com duas mães.
* Instagram @maternidadesapatao
Cartas da Paula
CARTA 1
Olá, eu sou a Paula, e vim falar sobre as amizades que me salvaram na maternidade. Eu ouvia muito dizer sobre como ter filhos mudava nosso ciclo de amizades, mas achava que fazia parte de uma bolha onde isso não aconteceria. Em parte, aconteceu. As amigas mais próximas que eu tinha, que atravessaram todos os desafios mais sérios que tive na vida, não navegaram a nova dinâmica da amiga indisponível que me tornei. O afeto delas realmente dependia da minha disponibilidade de tempo, algo que andava escasso por aqui. Por outro lado, outras amigas me surpreenderam. Muito atentas à solidão materna abordada pelo feminismo, mesmo sem serem mães, quiseram entender e se adaptar. Mudaram as dinâmicas de grupo para viabilizar minha presença e a da minha filha em aniversários, viagens, confraternizações. Foram minhas reais companheiras no cuidado com minha filha nos momentos de socialização em grupo. Passados 3 anos, percebo hoje que parte das amigas que se afastaram o fizeram porque realmente não quiseram se adaptar. Talvez elas gostassem de uma leveza e espontaneidade que eu já não podia oferecer. Outras se afastaram por não saber como participar da nova dinâmica, até queriam se aproximar, mas as próprias rotinas impediram. E outras amigas nasceram da maternidade, todas mães, pessoas com quem eu dificilmente me conectaria não fosse nossa situação compartilhada. O que penso hoje é que a maternidade muda a gente. Algumas mudanças são temporárias, outras nem tanto. O aprendizado que fica é que amizades, assim como o resto da vida, se apresentam em ciclos. Tem gente que vem pra ficar pra sempre, e gente que não. Pensar assim me ajudou muito a seguir a vida em frente e em paz.
CARTA 2
Quando engravidei, tínhamos uma turma de uns 10, 15 amigos, dos quais cinco eram um núcleo-duro - eu, meu marido, um casal e um cara. Costumávamos falar que topávamos qualquer cilada junto, desde aniversário de cachorro até velório de parentes. Mas, quando anunciei minha gravidez, essa amiga disse que essa tinha sido a pior notícia da vida dela, que eu estava lascada, que agora eu ia ver, que seria tenso. Na época levei na esportiva porque a gente sempre se zoava assim.
Até um final de semana antes de eu parir, estávamos lá, firmes e fortes, topando qualquer cilada. Mas depois que meu filho nasceu a coisa mudou. Esses amigos fixos começaram a sair sem nos chamar - o que é natural, não é tudo que dá pra encaixar um bebê. Só que mesmo quando estávamos no mesmo rolê, éramos ignorados por eles.
Até o fatídico dia em que eu estava meio pirada com o puerpério e me retirei do grupo do WhatsApp depois de ler algumas piadas machistas. Essa “amiga” me mandou mensagem no privado perguntando o motivo e, assim que falei, ela mandou um print da nossa conversa para o grupo — e meu marido, que ainda estava lá, viu.
E aí foi só ladeira abaixo. Ela colocou todos do grupo de amigos “contra” mim. E outro dia, quase 3 anos sem contato, fiquei sabendo que ela diz que fiz coisas terríveis contra ela. A coisa terrível: tive um filho. A sensação que fiquei é que ela fez questão de me provar que ter um filho era difícil.
CARTA 2
Eu tenho um outro lado da moeda sobre esse assunto! Tenho 36 anos, eu não sou mãe (não consegui engravidar) e sinto que fui excluída por algumas amigas quando elas se tornaram mães. Eu sou uma pessoa muito disposta, adoro ajudar, adoro fazer companhia, adoro cuidar das crianças, mas como a vida ficou corrida pra elas, cada uma focou no job mãe e fiquei de lado.
Fiz de tudo pra me manter próxima e me enturmar com a nova realidade delas, mas com algumas perdi até o contato. Embora chateada, guardei todos esses sentimentos dentro de mim, porque nunca quis colocar mais um peso nas mães (afinal, a humanidade deu meio errado, mas as mães não, elas deram bem certo e elas são tudo).
RESPOSTA ÀS CARTAS:
Lendo as cartas da Paula desta edição, não podemos deixar de pensar que, porra, galera, vamos aprender a nos comunicar melhor, né? A impressão é de que poucos conseguimos expressar o que sentimos. Se você quer ter filhos e ficou enciumada ou confusa com a gravidez da amiga, converse sobre isso com alguém (não precisa ser com a amiga grávida, que esse problema não é dela). Se você vai sentir falta da sua amiga cachaceira porque agora ela é mãe, converse sobre isso também. Outra vez: não precisa ser com a mãe abstêmia porque ela está com os hormônios pululando e talvez não tenha cabeça pro seu drama etílico. E se você virou mãe e cansou de certos amigos, ou não está na mesma frequência deles, tá tudo bem, isso também acontece fora da maternidade, amizade tem fases de vício e fases de bode: mas comunique, ó, amigão, ando cansada, com mil coisas na cabeça, foi mal que estou distante, mas ainda gosto de você.
A maternidade traz de brinde uma mega solidão, porque aquela mulher de antes não existe mais, os assuntos mudaram completamente. A gente fica perdidinhae a privação de sono faz a gente se sentir engolida pelo Demogorgon. O puerpério talvez não seja a fase mais bacana e legalda sua amiga, mas ela tá precisando de escuta - seja virtual, seja física, seja tátil. É muito boa a sensação de: "tô aqui, tá?". (Aliás, fica a dica prazamiga: um "tô aqui" por inbox vale mais que mil "te amos" nos comentários das fotos no Instagram. Até porque não ache que as fotos do Instagram são a realidade. "Vi que você está ótima, tô te acompanhando pelas redes sociais" é comentário de inocente. #porramiga Não, né?) Enfim, se você, Paula, tá lendo a gente e se mal com a solitude, verbaliza, troca uma idéia. E esperamos que a FOLGA te ofereça um pouquinho de companhia.
VOCÊ, PAULA, QUE TAMBÉM QUER COMPARTILHAR SUA HISTÓRIA COM A GENTE, ESCREVA PARA folga.umamaepravc@gmail.com
Talvez você não tenha tempo, mas fica aí a dica
ANI: Minha dica de hoje é para você parar um pouquinho, fazer um balde de pipoca e assistir ao filme Arremessando Alto. Como boa atleta amadora, eu amei a sensação de torcer novamente por um final feliz. Já assisti com meu boy umas duas vezes e nos rendeu bons suspiros e risadas. Para quem gosta de basquete e esporte em geral, é uma boa pedida!
HEL: O filme Seguindo Todos os Protocolos, com direção de Fabio Leal. Assisti esse filme online na mostra Tiradentes e amei, como todos os filmes desse diretor pernambucano. Fábio não tem medo de ser original, traz crítica e questionamento com bom roteiro e humor ácido. Adorei e faço questão de ir assistir nos cinemas também. Indico de olhos fechados. Mas vale dizer que tem muito pau, muito homem nu e muita pegação (tipo, não leve seus filhos a não ser que eles sejam 18+, risos).
CAROL: Sinto que, enfim, depois de três anos de ter tido a Eva, voltei a ler numa boa frequência. Até terminei alguns livros que não eram por trabalho. Um deles, O Pacto da Branquitude, da Cida Bento, pela Companhia das Letras. A gente fala um tanto sobre os impactos negativos da escravidão para as populações negras, mas pouco — muito pouco — sobre os impactos positivos para as pessoas brancas. Olha isso: "um escravizado trabalhando em uma plantação na colônia chegava a ser até 130 vezes mais lucrativo para a Inglaterra do que um inglês trabalhando no próprio país". Daí que todos — brancos ricos e pobres — se beneficiaram da escravidão. Aqui, no Brasil, donos de escravizados foram ressarcidos pela lei do ventre livre. O país também subvencionou as passagens dos imigrantes brancos da Europa pra cá. Ou seja: vantagens, privilégios e cotas para brancos passarem na frente. Mas ainda tem quem questione as cotas raciais para negros em empresas e universidades — o que seria uma reparação histórica. Manter silêncio sobre esses assuntos faz parte do tal "pacto da branquitude". Como escreve a Cida, "é urgente fazer falar o silêncio, refletir e debater essa herança marcada por expropriação, violência e brutalidade para não condenarmos a sociedade a repetir indefinidamente atos anti-humanitários similares".
Classificados da mãe
@BONECASNATY — “Bonecas indígenas feitas à mão por guerreiras do povo Anambé”
@MAMAHOOODSTORE _ — “Mais que uma marca, somos rede de apoio”
@BIAH_QUILES — Biah é educadora física (e mãe de um filho lindo demais) que faz consultoria sobre postura, saúde, esportes e mais. O perfil dela está cheio de dicas boas.
Gostou do FOLGA? Compartilhe com suas amigas, amigos e amigues.
Chegou aqui e não é assinante? É só deixar seu e-mail para receber nosso conteúdo mensal. Ou, se quiser receber conteúdo exclusivo, faça sua assinatura paga por apenas 10 reais por mês.
Quer falar com a gente? Escreva para folga.umamaepravc@gmail.com ou deixe seu comentário.
alô alô folguers! e aí? o que acharam da nossa edição sobre #amizade?
Achei tudo! Cheguei pelo insta da hel e, apesar de não ter filhos, achei as discussões o puro suco do amadurecimento social e empatia. Vim pra ficar <3