Folga é tudo o que uma mãe mais precisa, e dificilmente consegue. Foi com esse pensamento que criamos nossa newsletter. A Folga é um espaço reservado para quem sente falta de ter um momento consigo mesma. Escrita por três mães, com diferentes vivências e configurações familiares, mas com o mesmo intuito de dividir as loucuras e intensidades desse universo. Se esconda na lavanderia, se tranque no banheiro, mas tire essa Folga com a gente, nós precisamos.
A culpa é aquele sentimento que aparece quando temos dúvida sobre nossas próprias ações. Ela surge quando nos arrependemos ou nos sentimos frustrados. E se tem alguém que entende de culpa, é a mãe!
A culpa materna nasce das nossas expectativas inatingíveis. Já começa no teste de gravidez positivo quando você lembra que tomou uma cerveja três semanas antes e percebe que sua poupança não estava preparada para essa notícia. Ela te acompanha durante toda a gestação, quando você não vai pra ioga, cede às laricas, e conta pro chefe que vai sair de licença. Quando o bebê nasce, ela, a culpa, toma conta de você. Parece que só você não sabe colocar um bebê pra dormir, que você não deveria querer olhar o celular e sim pro rostinho do bebê dia e noite. Dá uma culpa danada de ficar em casa com o bebê e uma culpa pior ainda sair e deixar o bebê em casa. Eles crescem e não melhora. A culpa é mutante.
Como se dedicar à criação dos filhos dando todo nosso potencial físico, mental e psicológico se também precisamos dessa disposição pro trabalho, pros estudos, pra casa, e pra nós mesmas? Coitada da mãe. Ainda tem o Instagram, fazendo parecer que tem mãe que é 100% mãe, 100% profissional, 100% gostosa e de unha feita. Mentira, mãe.
Por isso precisamos lembrar que a cura da culpa é a autocompaixão. Um estudo da brasileira Adriana Drulla Rossi, da University of Pennsylvania, descobriu inclusive que os filhos de mães autocompassivas — que aceitam seus defeitos e limitações sem carregar uma mochila de pedra, que é o peso da culpa — criam filhos mais resilientes e que também se amam mais. Então bora sem culpa?
Culpa de não sentir culpa
No final de março, viajei para o casamento de uma amiga em Louisville, no Kentucky, e deixei minha filhinha, Eva, que está perto de completar três anos, em Brasília. Mas não senti culpa.
Há algumas semanas, me mudei de casa. No caos da rotina entre cinco trabalhos, a maternidade solo e a vida em caixas, passei alguns dias sem pentear o cabelo — o meu e o da criança. O dela pelo menos volta desembaraçado da escola porque as professoras dão banho depois do parquinho e fazem penteados elaboradíssimos. Já o meu está condenado à prisão perpétua num coque. (O que de mais azarado pode acontecer comigo num passeio pelo bairro não é um pássaro cagar na minha cabeça, e sim um pássaro pedir reintegração de posse da minha cabeça achando se tratar do ninho dele.)
Por isso não senti culpa de deixar meu bebê pra trás. É bem provável que ela fique mais bem cuidada pela avó, que tem paciência de cantar brilha brilha estrelinha à exaustão, do que pela mãe que tenho conseguido ser nesses últimos dias.
A caminho do casamento, no avião lotado, com frio porque esqueci as meias grossas, desconfortável com a máscara tapando o rosto por tantas horas e sem bateria no celular porque esqueci o carregador, sinto uma felicidade inexplicável por ouvir meus pensamentos outra vez. Estar desconfortável em aviões já foi uma meta de vida — quando era uma jovem repórter com muita ambição e idealismo e nenhum dinheiro. Voltar a sentir esse desconforto depois da maternidade e da pandemia teve um quê de alívio.
Antes de seguir para o casamento, fiz escala em Atlanta para ver outra amiga, mas não consegui sair sequer para ver a cidade porque um sono cabuloso me derrubou. Parece que meu corpo saiu do estado de alerta constante de cuidar sozinha de uma criança atípica e forçou a reiniciação do sistema. Dormi por muitas horas. Outra vez, sem culpa.
E, então, chegou o dia do casamento. Um casamento brasileiro, da amiga mais animada que tenho (que se jogou de vestido de noiva no chão para imitar a Anitta no clipe de “Envolver” e amanheceu num karaokê cantando “eu quero tchu, eu quero tcha" com um vaqueiro mexicano). Não por menos, bebi até ficar tão ruim quanto a biografia do Sérgio Moro e dormi no dia seguinte até meio dia. Culpa? Desconheço.
Mas daí outra vez sinto culpa por não sentir culpa.
Eu quis ser mãe e gosto de ser mãe. Mas também gostei muito de quem eu fui antes. E ainda gosto de estar sozinha, de escrever por horas sem ser interrompida, de viajar o mundo sem ser responsável pela vida de outro alguém. Nesses momentos, não sinto culpa. O que sinto é saudade. Saudade dela, que é o amor da minha vida e não está ao alcance dos meus braços. E saudade de mim. Desse outro eu que eu quis ser e fui. Até escolher ser mãe.
A culpa é de quem?
“A culpa é sua! Quem mandou você querer ser mãe 24 horas e esquecer de ser minha mulher?”
Escutei atordoada essa frase do homem que saiu com mais de 10 mulheres, inclusive algumas do meu trabalho, enquanto eu iria parir a nossa filha em algumas semanas.
Essas palavras saíram da boca do defensor da família tradicional, um cidadão de bem. O cara hétero top, macho escroto, de beleza questionável, que achava que o clitóris era a uretra. Um homem que nunca me apoiou em nenhum sonho. Nenhum.
Antes de continuar, quero deixar nítido que, assim como disse minha parceira de folga e de luta Carol Pires, as palavras a seguir exprimem minha opinião sobre esse indivíduo, que foi constatada por meio de um experimento frustrante e baseada no desprazer do convívio. Não acho e nem defino todos os homens assim. Mas seguindo…
Foram meses de dor e sofrimento após esse episódio. Tentei me manter firme o máximo que pude, porque tinha um ser humano lindo sendo gestado dentro de mim, que dependia que tudo desse certo. Ou quase.
Semanas depois, eu pari minha primeira filha. Diante de muita dor, lágrimas e acusações. Nasceu a criança, a maternidade e a culpa. A dose forte de culpa que eu carregava era por ter escolhido tão mal aquele que seria seu pai.
Em um determinado momento, tentei me livrar daquela situação de violência e sofrimento e consegui me separar. Mas o emocional estava tão abalado que o corpo sentia toda aquela pancada. Sem perceber, eu saí do tamanho 44 e fui involuntariamente para os tamanhos 34, 36. Adoeci, tive vergonha de ir trabalhar, me afastei de amigos, tirei todo mundo das minhas redes sociais e me fechei para o mundo.
Tinha vontade de ser invisível no meio de uma sociedade que insistia em me fazer visível. Quando não era uma conhecida que dizia: “ah que pena, você separou?”, era a chefe que definia o meu único atraso como “eu entendo, já me separei várias vezes”.
Eu achava que não tinha como dar conta de uma maternidade real, num sistema que não cuidava das mães, muito menos daquelas que tocavam a vida e as crias sozinhas. Eu tive culpa por muitas vezes não dar conta, mas tentava me virar da melhor forma possível. Não foi simples, nem foi fácil, eu estava extremamente sobrecarregada em todos os níveis possíveis.
Fui passando os dias alimentando a culpa de noite e me crucificando de manhã. Eu não conseguia parar de me questionar como eu tinha chegado até ali… Como eu não percebi antes todas as situações pelas quais eu passei? Como eu não pude ser capaz de ler os sinais?
Metade de mim era culpa e a outra metade eu me dedicava a cuidar da minha pequena. Foram dois anos de sofrimento que pareciam não ter fim. Conviver com esse sentimento destruidor fez com que minha saúde quase chegasse ao fim. Por um instante longo eu me anulei, desisti de mim, dos meus objetivos, de tudo que eu gostava de viver, achava que essa era a única maneira de viver pela minha filha e pra ela.
Mas o tempo passa, sempre passa. E conforme ele foi passando, eu me virei. Tudo foi um processo de evolução. Cada ato. Cada medo. Cada choro.
Em um certo momento eu reagi. Percebi à minha volta quantas pessoas estavam ali, dispostas e disponíveis. Consegui entender que haviam pessoas próximas de mim que me amavam, e que me conectar com esse mundo que me esperava não me tornava menos mãe. Muito pelo contrário. Olhei para o sorriso da minha pequena e percebi que também precisava fazer isso por ela, além de fazer por mim enquanto mulher.
Então busquei ajuda, me fortaleci na minha espiritualidade e arrumei um vibrador. Posso dizer que de toda essa culpa saiu uma grande empoderada mulher mãe. Muito mãe, mas também muito mais mulher. Me olhei com cuidado e afeto, com a generosidade que também queria que minha filha se olhasse e olhasse para o mundo.
Pensei: “não tem ser humano no mundo, principalmente qualquer um que não tenha saído de mim diante de um parto de doze horas, que mereça que eu perca minha saúde e a minha vida!”.
Entendi que a culpa não era minha. Nunca foi, nunca seria.
Nunca mais me permiti aceitar migalhas ou alguém que me colocasse para baixo sem valorizar meus sonhos, sem me valorizar, sem somar, muito menos sem entender que eu sou uma grandíssima gostosa.
Hoje, a única coisa que podem me acusar é de ser feliz, porque isso não tenho como negar.
Chupa, culpa!
Para falar sobre culpa eu preciso usar uma memória muscular e sensorial, digna de uma atriz, que me leva de volta para os primeiros anos da minha maternidade, anos em que havia culpa. Muita, por sinal.
A minha primeira culpa? Eu não lembro, e sabe por quê? Porque a culpa — na amamentação, de sair, de complementar com fórmula por não ter leite suficiente, de viajar a trabalho deixando um bebê de 7 meses para trás — não era minha, era de alguém que insinuou, disse ou prescreveu. (Mas, péra, Hel, você deixou a criança onde? Nas ruas? Na caçamba? Não, em um lar repleto de conforto e cuidado.)
A culpa de procurar uma creche, a culpa de deixar na creche, a culpa de trabalhar OITO horas fora de casa, a culpa de escolher o tipo de parto e — uma das mais pesadas —, a culpa de ter tido um filho fora de uma relação heteronormativa, e logo ser mãe solteira… A culpa, a culpa, a culpa.
Vivi uma depressão pós-parto cheia de culpa também. Afinal, que mãe eu poderia ser deprimida? Quando comecei a melhorar e querer conviver em sociedade de novo, mais uma vez: Eita, mas você tem coragem de deixar ele com outrem para sair? Mas você não sente saudade?
Essas frases poderiam ser facilmente trocadas por uma afirmação, por algo como: ei, bonita da estrela, cê tá achando que pode ser mãe solteira e ir pro rolê beber? Dançar? Rir? Nananão, volta para casa e fique 100% conectada ao seu bebê ou é fogueira em você. Dessa forma, anos depois, fui me dando conta que, das culpas que senti, talvez 3% fossem minhas mesmo, ou fossem uma projeção criada por mim. De resto, meus amô, era tudo do outro.
Mais tarde, em um percurso psicanalítico (jeito bonito que a gente fala para terapia), eu descobri que a culpa antecede o desejo. XABLAU! Sim, xablau, porque faz um sentido tão grande!
Hoje, quando esse artifício que o patriarcado arcaico usa para que sintamos que não pertencemos mais ao mundo, pra fazer a gente maternar sozinhas e de graça pro capitalismo funcionar, eu sei (após muita angustia) que estou sentindo culpa para evitar um desejo bem forte — um desejo latente que provavelmente está cada vez mais difícil de negar, um desejo ali pertinho, quem sabe já ao meu alcance, quem sabe já quase acontecendo.
Vale a pergunta: Vou ter prazer em realizar meu desejo ou vou sentir culpa? Se acaso eu fugir desse trajeto, dessa meta, desse desejo, isso me faz acreditar que sou uma mãe melhor? Difícil, né? Até porque esse termômetro de boa ou menos mãe tá sempre quebrado.
E tem mais: uma hora me dei conta que eu gostaria muito que meu filho me visse como uma mãe que não deixou de desejar, de fazer coisas para si, e não só para ele. Uma mãe que existe para além da maternidade. Que ser humano é esse que vai crescer tendo uma mãe que vive apenas pra ele? Depois a gente se pergunta porque será que aquele cara ali é um machistinha? Fica a dica.
Olha, minha gente, abre seu peito, respira fundo e, toda vez que esse sentimento vier, converse com você mesma antes de alguma decisão. Essa culpa é minha ou eu acho que devo sentir essa culpa para ser validada como boa mãe? Não é fácil, mas é um exercício necessário estabelecer de onde a culpa vem.
Acho que quanto mais a gente entender que boa parte da culpa materna é fake news melhor. E olha, não é fácil, caramba. Se você ainda tá nadando crawl na culpa, tá tudo bem, eu não acordei um dia e falei “vou parar com essa droga, chega basta, muda Brasil”! Foi gradativo, após muitos tombos e acertos. Fui ali na tentativa e, com o tempo, você se vê enxotando essa maldita antes mesmo que ela tome conta da casa.
Cartas da Paula
Mande a suas histórias, cof cof, quer dizer, histórias da sua amiga, a Paula.
Esse espaço aqui é para aquela história que aconteceu com uma amiga, sabe? Você nem precisa revelar o sobrenome dela. Nem mesmo o nome. Ou ela pode coincidentemente se chamar Paula, como a nossa seção. O importante é que a gente quer receber uma cartinha dela. Sabemos que é difícil, mas tenta não escrever um livro, tá, Paula? Pra gente poder publicar na íntegra sem acabar o espaço que existe NA INTERNET.
Nossa primeira carta veio de uma amiga, a Paula:
Oi, gente. Tudo bem? Eu sou a Paula, tudo bem por aqui. Sou mãe de uma criança de 9 anos e moro sozinha com ela. Eu tô bastante sobrecarregada de trabalho — com a agência, com meus freelas, com a maternidade, a casa e mil responsabilidades. O pai da minha filha fica com ela em fins de semanas alternados. Durante a semana, busca três vezes na escola. E dorme com ele às quintas. Isso porque ele recebe de mim um itinerário com todas as atividades da criança porque sem isso ela ficaria sem ir à aula, sem fazer dever e estaria usando as roupinhas que ganhou de presente quando nasceu. Há tempos que eu repito pra mim e pra todos à minha volta que tá tudo bem, mas não está! Estou cansada e queria ter também um tempo meu. E não só pra me cuidar. Pra ter ideias também, pra trabalhar melhor. Mas que horas? 4 da manhã? Sinto que há nove anos a conta de tempo não fecha com as horas que o dia tem. Tentei muito enxugar meus gastos pra ver se dava pra trabalhar menos, mas é uma conta que não fecha. Quando converso com amigas, todas estão na mesma situação. Meu corpo dói de cansaço e eu sei que isso não é normal e não tá tudo bem. Mas confesso que não vejo saída. Beijos da Paula.
Paula, menina, primeira coisa: puxado! Sabemos do que você está falando. Não é só dar comida, banho, colocar pra dormir, fazer dever de casa, educar e amar. É também ter na cabeça toda essa agenda, saber dos médicos, das vacinas, dos professores, dos amigos da criança, da saúde mental e emocional dela, segurar a onda das birras e dos imprevistos. E a sensação de todas aqui é a que se a gente não gerenciar essa outra vida sozinhas a vida da criança desmorona porque o outro responsável pela fecundação da criança,só dá conta quando requisitado e munido de um manual com o passo a passo. Isso tem nome: maternidade sob capitalismo patriarcal. Mas como aqui vamos falar mais de mãe do que de Marx, nossa resposta é meio fuén: também não sabemos o que fazer além de falar sobre o assunto, nos unir, e brigar por uma sociedade mais justa no campo pessoal e também no político. Esperamos mesmo que essa newsletter seja um fórum aberto sobre tudo isso. Vamos juntas? <3
Ei, você, Paula, tem uma história pra gente? Mande para folga.umamaepravc@gmail.com
Classificados da Mãe
@cami_pires - bordados personalizados pela artista têxtil e mãe feminista Camila Pires (que já virou irmã postiça da Carol Pires de tanto que confundem).
@velasbasile - Velas de cera de palma e óleos essenciais com aromas naturais e terapêuticos. Produção manual e feminina desde 2016.
@ _opannoemeu panos de prato nada convencionais para cozinhas não convencionais. ✨ Feito a mão com amor.
@uzuriaacessorios acessórios que buscam exaltar a beleza e o legado afrobrasileiro.
Ei, mãe trabalhadora, quer aparecer aqui? Mande seu trabalho para folga.umamaepravc@gmail.com
Talvez você não tenha tempo, mas fica aí a dica
Hel: Lendo o livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório. Fala muito sobre racismo e relações entre pais e filhos. Tão bom que venceu o Prêmio Jabuti na categoria “Romance Literário”.
Carol: Vendo Minha amiga genial, na HBO. Fala muito sobre amizade e, nesta terceira temporada, sobre feminismo e esquerdo-machos. (Na revista piauí tem um texto MUITO BOM do Alejandro Chacoff sobre os personagens masculinos de Elena Ferrante — mas contém spoilers!)
Ani: Lendo o livro Pretagonismos, organizado por Rodrigo França e Jonathan Raymundo, que reune 28 autores negros abordando temas diversos, de educação a ancestralidade. O livro foi lançado em abril de 2022 pela Editora Agir numa noite memorável em Botafogo, inclusive esgotando todos os livros em poucas horas.
Mais:
Nesse artigo para a Forbes, Alison Escalante diz que a culpa materna é algo que acomete mulheres de todos os países, mas um estudo publicado na Qualitative Sociology mostra que as mulheres norte-americanas sentem-se ainda mais culpadas. A razão? A cultura capitalista. "Em outras palavras, os EUA precisam que as mães se sintam culpadas ou podem exigir mais ajuda social". O texto é em inglês.
A culpa, aliás, nasce antes do bebê. É o que diz a médica e doula Robin Elise Weiss. "Como menos de 50% das gestações são planejadas, é comum que muitas mulheres se envolvam em atividades que teriam evitado se soubessem que estavam grávidas. Você fica preocupada com aquele copo de vinho que você tomou durante a segunda semana de gestação? Ou com o sushi que você comeu durante a terceira semana? Não fique." Texto em inglês.
Não sou mãe, mas amo ler sobre o assunto e adorei a primeira edição!
Não achei a série, Carol...